sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

3° pelotão

Toda tropa é uma corja.

Garrincha na cara do mundo

Adriano de Paula Rabelo


“Feliz do povo que pode esfregar um Garrincha na cara do mundo!”. Assim escreveu Nelson Rodrigues numa crônica logo após a semifinal da Copa do Mundo de 1962, em que o grande jogador realizou uma de suas maravilhosas exibições. Já escrevi aqui sobre Garrincha como expressão da brasilidade profunda, como encarnação do anti-herói torto que povoa os nossos arquétipos: aquele que, em vez da força e dos poderes físicos superiores, utiliza-se da malícia e da sagacidade para superar obstáculos, muitas vezes transformando suas próprias deficiências físicas em qualidades especiais. Isso não somente por suas pernas tortas – uma bem mais curta que a outra – e a bacia deslocada, a pequena estatura de quem cresceu mal alimentado nos grotões do interior do Brasil, os olhos ligeiramente estrábicos, o corpo cheinho de quem só veio a fazer ginástica pela primeira vez já próximo dos vinte anos. Sua forma de jogar também contrariava todos os princípios do esporte, subvertia todas as táticas, porém alcançando os melhores resultados.

Seu biógrafo Ruy Castro conta que, num amistoso do Botafogo na França, em 1955, faltando cerca de cinco minutos para o fim da partida e com o time carioca aplicando uma goleada, o técnico pediu para que os jogadores prendessem a bola e se poupassem. Eis a descrição do que então se passou: [Garrincha] “Começou a driblar sem soltar a bola para ninguém, a enfiá-la entre as pernas dos beques e a fazê-los trombar uns nos outros, como se estivesse nas peladas de Pau Grande [sua cidade natal]. Ficou tantos minutos com a bola que os adversários já não se atreviam a ir tentar tomá-la. O estádio inteiro levantou-se para aplaudir. (...) Garrincha então partia para cima deles e, às vezes, voltava para driblar em direção ao gol do próprio Botafogo. O jogo terminou com a bola aos seus pés.”

Na final do Campeonato Carioca de 1957, já no começo do segundo tempo, com o Botafogo goleando o Fluminense por 4x1, Telê Santana pediu a Didi, entregando os pontos: “Vocês já são campeões. Diga ao Garrincha para parar de desmoralizar o Clóvis e o Altair. Vamos ficar por aqui.”

Era comum que laterais adversários se aproximassem dele antes do jogo e implorassem: “Mané, quebra meu galho. Estou pra me casar e meu contrato está no fim. Vê se não judia muito de mim, senão eu fico mal.”

Na biografia de Castro há uma foto de um jogo entre Brasil x México pela Copa de 1962, em que Garrincha, com a bola nos pés, está cercado por nada menos que oito adversários – alguns já caídos – que tentam em vão tirá-la.


Garrincha driblando oito de uma vez


Foi esse jogador com nome de passarinho que, nos anos 1950 e 60, passou a ser conhecido como “alegria do povo”. Como um Carlitos de Chaplin, ele conseguiu, com sua arte, suavizar os graves problemas enfrentados pela grande maioria de pobres em nosso país, fazendo com que eles pudessem sonhar com a possibilidade de as coisas serem diferentes. Sobre isso escreveu Carlos Drummond de Andrade numa crônica por ocasião da morte do excepcional futebolista: “Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.”

Por outro lado, um país que produziu um Aleijadinho, um Machado de Assis, um Santos Dumont e um Garrincha – essas figuras que se tornaram gloriosas a despeito de ou por causa de suas faltas – já deveria ter superado os seus complexos nacionais. Talvez o povo já tenha feito isso. Nossa casta dominante é que – viúva da chic Paris, separada da snob Londres, distante da cosmopolitan Nova York –, encharcada de provincianismo, prossegue cada vez mais vira-lata.

Mas voltando a Garrincha, como todos sabem, ele teve um triste fim, encerrando a carreira bem cedo por causa de médicos inescrupulosos que lhe aplicavam anestésicos nos joelhos machucados, a fim de que o Botafogo pudesse cumprir contratos em excursões pelo exterior e também para que ele pudesse jogar partidas importantes. Após abandonar o futebol profissional, perdendo seus referenciais, Garrincha se entregou ao alcoolismo, que já vinha de longa data, e passou a ser destruído lentamente. Até que a morte o colheu, praticamente na indigência, no início de 1983. O templo no qual foi velado não poderia ser outro: o estádio do Maracanã, palco maior de seus espetáculos.

Nasci pouco depois do encerramento da carreira profissional de Garrincha. Mas tive a felicidade e a frustração de vê-lo jogar. É que, no final dos anos 1970, ele percorria o Brasil com um time de exibição. Houve uma ocasião em que esse time foi parar em Divinópolis, minha cidade natal, para um amistoso contra o Guarani local. Eu devia ter uns oito ou nove anos, e meu pai me levou para ver o gênio. Garrincha estava gordo, lento, com péssimo condicionamento físico e mau de saúde, já esmagado pelo álcool. Mal conseguia dar uma arrancada de dez metros. Uma turma de peladeiros completava a paisagem na sua equipe. Nosso Guarani não somente venceu a partida como por vários anos tivemos de agüentar Coca, o lateral esquerdo divinopolitano, jactando-se de que marcou Garrincha e não o deixou fazer nada em campo! Retrucávamos que, naquelas condições, até nossas bisavós, até os cones de treinamento marcariam Garrincha, e ele não faria nada em campo... De todo modo, terminado o jogo, a meninada e seus pais entraram no gramado para tirar fotos com o ídolo. Eu e meu pai tiramos uma abraçados com ele, um de cada lado, sorridentes. Como lamento hoje que essa foto haja se perdido entre os desorganizados álbuns e sacos de fotografias deixados por meu pai, que também já não está entre nós!

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Pescoção

A gravata é uma forca lenta.

O desfocamento do estrangeirismo

Adriano de Paula Rabelo


No último dia 12 de dezembro, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou o projeto de lei do deputado Aldo Rebelo que visa “proteger” e “defender” a “língua portuguesa”. Apresentado em 1999, somente neste ano o projeto, que já foi aprovado no Senado, vai para a última votação no plenário, devendo entrar em vigor em breve. Ironicamente o texto de Rebelo baseia-se em duas leis estrangeiras, sancionadas na França nos anos de 1975 e 1994, cuja pretensão era proteger a latinidade da língua.

Nestes quase dez anos de tramitação do projeto do deputado alagoano, uma acirrada polêmica tem sido travada entre lingüistas e um variado contingente de pessoas que acreditam que a proteção da língua nacional corresponde à salvaguarda de nossa soberania. Os cientistas da linguagem em geral atacam toda tentativa de se legislar sobre o idioma, pois ele é uma entidade viva, que se modifica constantemente e, como parte desse processo, entra em contato com outras línguas, assimilando vocábulos e expressões que o enriquecem expressivamente. Para eles, o estrangeirismo excessivo e sem respaldo no espírito do idioma nacional não passará de um modismo e será descartado naturalmente. Já os paladinos da nossa soberania e da pureza de nossa língua consideram – não sem razão – que há um emprego excessivo de estrangeirismos no Brasil, que eles exprimem em geral um precário domínio da variante chamada “culta” do idioma e freqüentemente se compõem de termos apenas pescados no dicionário de inglês; duas faces, portanto, da ignorância. Além disso, o emprego de termos na língua de George Bush, além de representar subserviência ao imperialismo, tem também um aspecto classista, pois todos sabemos que, por exemplo, teen não é qualquer adolescente, mas aquele de classe média para cima, que reside em área urbana, rato de shopping centers e lan houses, estudante de escolas particulares e beneficiário de mesadas dos pais. Por isso, em nome de nossos valores mais caros e do politicamente correto, o legislativo deveria intervir para expulsar esses corpos estranhos do organismo da língua.

Certamente a lei Aldo Rebelo será mais uma dessas que já nascem mortas neste país da ilegalidade triunfante. Sem dúvida a língua brasileira seguirá seu curso histórico para muito além da lei dos homens, gerando ela mesma suas próprias normas. Entretanto, o projeto do deputado do PCdoB tem tido no mínimo a virtude de provocar um amplo debate sobre um tema que obviamente merece ser discutido. Acontece que a discussão, tal como tem se realizado, me parece bastante fora de foco.


Uma língua e muitas contribuições


A língua brasileira, mesmo em suas vertentes mais castiças, constitui, sobre a base latina e lusitana, um amálgama de contribuições de línguas indígenas e africanas, do grego antigo, do francês, do espanhol, do árabe e, em graus menores, de outras línguas. Com os muitos contatos culturais proporcionados pelos meios de comunicação e de transporte atuais, nenhuma língua viva está isenta da incorporação de estrangeirismos. Esse fenômeno, quando assimilado com naturalidade para suprir uma falta, nomear uma nova realidade ou simplesmente pelo uso generalizado, aprimora a língua e lhe proporciona novas expressividades. Por outro lado, sempre foi uma das mais evidentes manifestações do imperialismo a imposição da cultura metropolitana. Quase todos os idiomas contemporâneos naturalmente sofrem influências da língua inglesa devido ao fato de os Estados Unidos serem não apenas a sede mas os comandantes e os grandes beneficiários da chamada “globalização”, controlando todo um vasto sistema midiático de massas do qual sua música popular, seu cinema, suas agências noticiosas e, hoje em dia, seus canais de tv a cabo são as principais expressões. Inevitavelmente, com quase um século de preponderância e rapinagem americana no mundo, com as conquistas tecnológicas originárias daquele país, com o triunfo do estilo de vida americano em todo o Ocidente, a língua brasileira não haveria de ficar isenta de anglicismos. Até aí tudo bem. O questionável abuso de termos ingleses entre nós, no entanto, ponto nodal da polêmica ora travada, se é que merece a celeuma que tem provocado, deveria remeter a uma discussão bem mais profunda e anterior à questão da linguagem. O teor da lei Aldo Rebelo e das discussões geradas por ela corresponde a combater um sintoma dos mais evidentes e deixar a doença intocada.

Necessitamos de um debate mais amplo sobre nossa ultravalorização do estrangeiro prestigioso, em especial do anglo-saxão, quase sempre acompanhada de autodepreciação. Antes da sobra de palavras inglesas em nossa língua, estabeleceu-se entre nós uma sobra do modo de vida americano, assimilada acriticamente por nossa casta dominante logo após a decadência francesa e a ascensão dos Estados Unidos, que assumiram a condição de paradigma de modernidade e qualidade de vida aos olhos colonizados de nossa elite. A partir dela, atingiu-se a massificação e o senso comum. Continuamos colonizados e seguiremos colonizados enquanto o país estiver à mercê dessa oligarquia espertalhona que nunca foi apeada de quase todas as instâncias de poder e cuja última grande jogada foi transformar Lula em feitor do horror econômico de fundamento especulativo. O Brasil oficial nunca foi o que realmente é, tal como o Brasil dos grandes meios de informação do eixo Rio-São Paulo. Só o será quando a democracia efetiva – que jamais existiu no país – se realizar através de uma ampla conquista dos mais básicos direitos da cidadania para todos e os espaços decisórios estiverem de fato abertos à participação direta do eleitorado. Obviamente um sistema público educação de boa qualidade – o que também não temos – é fundamental nesse processo. Com isso poderemos conquistar maior liberdade para sermos o que somos com muito mais naturalidade, inclusive nos enriquecendo com a contribuição lingüística e cultural estrangeira sem macaquice, tal como fizeram importantes movimentos da cultura brasileira no século passado, como o Modernismo, que dialogou criativamente com as vanguardas européias; a Bossa Nova, com o cool jazz americano; o Cinema Novo, com o neo-realismo italiano; o Tropicalismo, com a cultura de massas e a contracultura internacional.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Pathos

Tento ser simpático, torno-me mentiroso.

Últimas palavras

Adriano de Paula Rabelo


Manuel Bandeira desejou que seu último poema “fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais” e que contivesse “a paixão dos suicidas que se matam sem explicação”. As últimas palavras de alguém que está prestes a deixar a vida sempre provocaram fascínio. Tanto que em muitos lugares onde se praticou ou ainda se pratica a pena capital o réu tem o direito de dizer algo pela última vez. Naturalmente há um interesse especial pelo que as grandes personalidades disseram logo antes de expirar. Algo que funcione como um resumo de suas vidas ou como uma reflexão acerca dos grandes temas humanos, pois no limiar da morte todos os freios da conveniência se desfazem.

Platão conta em seu diálogo Fedro que Sócrates, condenado à morte por ingestão de cicuta, pouco antes de morrer teria dito a seu discípulo Críton: “Devemos um galo a Asclépio. Pague a dívida, não a esqueça.” Asclépio era o deus da Medicina, e o galo era o animal consagrado a ele. Sócrates, que considerava a morte uma libertação, oferecia o sacrifício como forma de agradecimento ao deus pelo obséquio de retirá-lo da vida.

Já na época do domínio Roma sobre a Grécia, o matemático e geômetra Arquimedes, forçado por um soldado a se apresentar ao general romano que tomou a cidade de Siracusa justamente no momento em que ele estava absorto na comprovação de seus teoremas – sentado no chão e desenhando na areia –, teria lhe dito antes de ser degolado: “Não perturbes os meus círculos.”

A tradição latina legou-nos as palavras finais de alguns imperadores romanos, quase todos extremamente soberbos. César Augusto teria mantido a pose de grandeza até o fim, pronunciando uma frase que posteriormente passou a encerrar ritualmente as representações teatrais romanas: Acta est fabula, isto é, “A história terminou”. Júlio César, vítima de uma conspiração na qual tomou parte seu próprio filho, teria exprimido seu estarrecimento ante a natureza humana ao ser apunhalado por ele: “Até tu, Brutus, meu filho!? Com isso, toda a esperança está perdida.” Vespasiano, sentindo-se morrer, foi bem pouco comedido: “Puxa, acho que estou me tornando um deus.” E de fato ele chegou a ser deificado em Roma após sua morte. Calígula, assassinado por seus próprios soldados, teria exclamado: “Eu vivo!” E Nero, que durante sua existência cultivou veleidades de comediante, se auto-avaliou com excessiva pretensão: “Que grande artista morre comigo!”

Os soberanos modernos, por sua vez, menos megalomaníacos e já imbuídos da cosmogonia cristã, muitas vezes exprimiram o peso de sua consciência no instante final. Felipe III voltou-se para um de seus ministros e disse: “Boa conta vamos dar a Deus de nosso governo!” E Carlos IX, da França, atormentado pela lembrança do massacre de milhares de protestantes na Noite de São Bartolomeu de 1572: “Quanto sangue! Quantos crimes! Que Deus me perdoe o mal que fiz!” A rainha Isabel, da Inglaterra, expirou pedindo: “Todos os meus bens por um momento de vida!” E Afonso XII morreu exclamando: “Que conflito! Que conflito!”

Políticos e intelectuais do século XX também foram bastante expressivos na hora derradeira. O ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt pediu simplesmente: “Apague a luz!” Já o economista britânico John Maynard Keynes lembrou uma de suas fontes de prazer: “Eu deveria ter bebido mais champanhe.” E o revolucionário e teórico do marxismo Leon Trotsky disse aos seus guardas, que estavam prestes a executar o homem que o feriu mortalmente a mando de Stálin, em 1940: “Não matem esse homem. Ele tem uma história para contar.” Winston Churchill, antes de entrar em coma e morrer uma semana depois, em 1965, teria dito: “Estou de saco cheio de tudo.” Ethel Rosenberg, assassinada de maneira infame juntamente com o marido Julius nos Estados Unidos, durante a Guerra Fria, sob falsa acusação de espionagem, afirmou logo antes da execução, em 1953: “Somos as primeiras vítimas do fascismo americano.” E Che Guevara, capturado por mercenários do exército boliviano em 1967, próximo à cidadezinha de La Higuera, teria mantido a dignidade de herói até o fim, dizendo a seu executor: “Sei que você vai me matar. Atire, covarde, você vai matar um homem!”


A morte de Sócrates (1787) – Jean-Louis David


Mas talvez sejam os artistas que nos legaram as últimas palavras mais expressivas. François Rabelais escreveu: “Vou em busca de um grande talvez.” E Leonardo da Vinci, encarnação máxima do gênio da Renascença, criador de uma obra universal e inesgotável, na hora de morrer disse algo que deveria estar no horizonte de todos os pretensiosos do mundo: “Ofendi a Deus e à humanidade, pois meu trabalho não alcançou a qualidade que deveria.”

Outro gênio, Mozart, teria dito: “Sinto o gosto da morte nos lábios... É algo que não pertence a este mundo.” E conforme a esposa de Gustav Mahler, este compositor terminou seus dias numa exaltação a seu ideal na música: “Mozart! Mozart!” Já Beethoven saiu de cena evocando a fórmula ritual pela qual eram finalizados os espetáculos da Commedia dell’Arte: Paudite, amici, comedia finita est, ou seja, “Aplaudam, amigos, a comédia terminou”.

Voltaire, instado por um padre a rejeitar Satanás, respondeu-lhe: “E isso lá são horas de fazer novos inimigos!” O já iluminado Goethe expirou pedindo: “Mais luz! Mais luz!” Heine, ao ser lembrado de sua vida pouco cristã, foi irônico: “Deus me perdoará, é a sua profissão.” Emily Dickinson percebeu que “a névoa está ficando casa vez mais cerrada”. Nosso Olavo Bilac pediu apenas: “Dêem-me café, vou escrever.” E Dylan Thomas, beberrão contumaz, teve uma preocupação bastante original: “Acabo de tomar dezoito doses de uísque seguidas. Acho que sem dúvida é um novo recorde.”

Henry David Thoreau teve o seguinte diálogo com uma tia no leito de morte: “Você fez as pazes com seu Deus?” “Eu nunca briguei com meu Deus.” “Mas você não está preocupado com o outro mundo?” “Um mundo de cada vez.”

Oscar Wilde pediu uma garrafa do champanhe mais caro do hotel onde estava hospedado. Enquanto expirava, tomando a bebida, disse: “Estou morrendo além das minhas possibilidades.” Outro que não apenas morreu, como também nasceu num hotel foi o dramaturgo Eugene O’Neill, que na hora fatal amaldiçoou seu destino: “Nascido num quarto de hotel e, maldito seja, morto num quarto de hotel!” Já o romancista Theodore Dreiser disparou: “Shakespeare, aí vou eu!”

Van Gogh morreu como viveu – melancolicamente. Suas últimas palavras teriam sido: “A tristeza vai durar para sempre.” Frida Kahlo, que também sofreu muito em vida, deixou as seguintes palavras como as últimas em seu diário: “Espero que a caminhada seja feliz e espero não retornar jamais.” E Pablo Picasso pediu aos que ficavam: “Bebam a mim.”

A dançarina Isadora Duncan se despediu como a grande artista que foi: “Adeus, meus amigos, vou para a glória!” Outro astro, o ator John Barrymore, sem perder a pose nem no instante iniludível, indignou-se: “Morrer? Eu deveria dizer não, camarada. Nenhum Barrymore permitiria que algo tão convencional acontecesse com ele.” Já James Dean, logo antes da batida do automóvel em que em pereceu, teria gritado: “Meus dias de diversão estão acabados.” Já Charlie Chaplin, quando o sacerdote que o assistia lhe disse: “Possa o Senhor ter compaixão de sua alma.”, teria respondido: “Por que não? Afinal de contas, ela pertence a Ele.”

Por fim, Elvis Presley, que ao final de sua última conferência de imprensa disse modestamente aos jornalistas: “Espero não ter aborrecido vocês.” Quantos milhões e milhões de pessoas neste mundo poderíamos responder: “Jamais!”

Certamente muitas dessas últimas palavras são lendárias. Quem morre doente, senil ou desesperado, por exemplo, não tem espírito para fazer estilo ou pingar gênio em frases de efeito. Quem morre de maneira rápida ou inesperada não dispõe de tempo nem de agilidade mental para elaborar obras-primas de concisão derradeira. Mas isso não importa. A lenda, por colar-se com perfeição a suas personalidades, tornou-se mais real que a realidade.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Jus

O melhor advogado é o que ganha uma causa mentirosa.

Sociedade das aparências

Adriano de Paula Rabelo


No conto “Teoria do medalhão”, Machado de Assis nos apresenta um pai que, após um jantar de comemoração da entrada do filho na maioridade, dá-lhe conselhos sobre como navegar de maneira eficiente em nossa sociedade, a fim de que seu rebento se realize como um medalhão, figura que ele considera a própria encarnação do êxito entre nós. O experiente senhor ensina que, para escapar à obscuridade, o candidato a ser bem sucedido socialmente deve assumir por inteiro aquilo que lhe corresponde na expectativa do vulgo, sufocando qualquer laivo de originalidade e idéias próprias, pois toda a sua ação consiste em manejar com habilidade o vasto acervo de lugares-comuns e convenções fartamente disponíveis e facilmente reconhecíveis entre a massa dos homens. Assim, apenas quando ancorado num realismo pragmático o medalhão poderá trafegar bem por entre a mediocridade geral. Isso é obtido através de sua adesão incondicional à ideologia dominante. Mestre do manejo das aparências, o medalhão não hesitará em lançar mão de frases feitas e fórmulas consagradas, não perdendo nenhuma oportunidade de fazer publicidade dos menores de seus atos. Mesmo o seu riso é codificado: não poderá jamais se aproximar da ironia, que é uma expressão de melancolia e questionamento, mas deve resultar da chalaça, da piada que o faz rebentar numa gargalhada a pregas soltas e que não questiona absolutamente nada. O medalhão mais bem acabado seria aquele que mantém, em seu mais alto grau, a “chateza do bom-tom” e uma “invejável vulgaridade”. O pai arremata sua lição comparando-a com O príncipe de Maquiavel.

De fato, “medalhionismo” pode ser considerado como um maquiavelismo para a vida privada e para a eficiência da navegação social mais rasteira. Tal como o grande pensador florentino, o pai do conto enxerga a humanidade como ela é, e não como gostaríamos que fosse.

Com a genial ironia que lhe é peculiar, Machado sempre põe a nu a melancólica condição do grosso da humanidade. No conto, o alvo mais direto de sua exposição é o bacharelismo exacerbado da elite de sua época, com seu anelo por ascensão social, sua obsessão por cargos e sua voracidade por honrarias e títulos. No entanto, o criador de Brás Cubas transcende em muito o seu tempo, apresentando-nos um fenômeno universal mas que talvez nunca tenha estado tão em evidência como atualmente: a identidade individual determinada por imagens e mitos criados no confronto com a alteridade.


O fundo das aparências para o mercado


Mais que nunca a sociabilidade se processa por meio de aparências e simulacros. Uma simples olhadela numa página qualquer de alguma revista dessas dedicadas ao estilo de vida de nossa high society exporá toda a miséria existencial das celebridades e novos-ricos atualmente em evidência. Mas para além desses panfletos dos grandes medalhões contemporâneos, no âmbito da gente chamada “comum”, percebe-se que também há muitas pessoas empenhando todas as suas forças para fugirem da obscuridade e se fazerem vistas de qualquer maneira. E o caminho para o êxito continua sendo o da vida como um manejo competente de aparências em que não se propõe nenhuma transformação do status quo, mas uma adequação individualista a ele com o fim de se colher dividendos pessoais. Nada mais reacionário que essa filosofia da imagem bonitinha para o mercado das trocas simbólicas que, em última instância, é uma imagem para o mercado tout court, já que hoje em dia tudo se mede por sua “vendabilidade”. Aí estão os reality shows como zoológicos humanos onde cada bicho se esforça pela simpatia do público com o espalhafato da estupidez. Aí está a política como um campeonato de marketing que se sobrepõe ao franco debate dos problemas da sociedade. Aí estão as mocinhas para quem o auge de suas carreiras consiste em posarem nuas para revistas masculinas de grande tiragem. Aí estão os jornalistas capangas do pensamento único, os advogados sofistas, os publicitários do eu, os hipócritas do politicamente correto, os gastadores de gente e as empresas-fornalhas dos recursos naturais... Todos eles exibicionistas de sua boa imagem.

Sem dúvida assistimos ao triunfo da razão cínica, fundamentada na sobreposição do interesse próprio ao coletivo, no narcisismo mais infantil e no descompromisso ético. A superficialidade das relações pessoais e o esgarçamento da vida pública são a decorrência óbvia da prevalência dos comportamentos fundamentados no individualismo e nas aparências. Ou recriamos um novo sentido de coletividade e cidadania – naturalmente inclusivo e emancipador –, ou a visão fatalista dos medalhões nos levará ao colapso e à barbárie. Todos os sinais disso já estão por aí, evidentes, para quem quer ver.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Anos-luz

Parente só é bom longe.

Divagação pelo reino dos nomes

Adriano de Paula Rabelo


João Cabral de Melo Neto inicia seu poema narrativo “Morte e vida severina” com o protagonista-retirante explicando quem é e a que vem. O definidor essencial de seu destino é o nome: Severino. Tanto que ele se transforma em adjetivo para qualificar justamente sua morte e sua vida, os constituintes fundamentais do destino de cada um. Em realidade, Severino é muito mais uma categoria de pessoas do sertão nordestino cuja triste destinação infelizmente permanece atual. Como diz o personagem do poeta pernambucano: “E se somos Severinos/ iguais em tudo na vida,/ morremos de morte igual, mesma morte severina:/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia.” Portanto, um Severino é alguém que carrega toda uma carga de miséria, sofrimento e injustiça, quando não na própria pele, ao menos como herança trágica do flagelo que há séculos assola aquela região do país.

Como muito bem percebeu João Cabral, cada nome contém em si um destino (ou, no caso da literatura, cada destino exige um nome adequado para se realizar). Jamais se viu um deus chamado Zequinha, herói chamado Leleco, um imperador chamado Gleidson ou uma embaixatriz chamada Lurdinha. Um deus há de ser Apolo, Shiva ou Emanuel; um herói, Odisseus, Beowulf ou Roland; um imperador, Alexandre, Augusto ou Montezuma; uma embaixatriz, por fim, há de ser Catarina, Margareth, Valentina... Uma beldade que se chamasse Neide – e não Helena, Beatriz ou Charlotte – jamais inspiraria guerras, poemas imortais e suicídios.

De Otto Lara Resende, Manuel Bandeira dizia que, com esse nome, ele já estava talhado para a glória em qualquer campo de atividade em que atuasse. Nosso grande poeta parnasiano se orgulhava de seu nome-alexandrino-perfeito: Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac. Molière, por sua vez, nomeou de forma muito adequada um hipócrita e falso devoto: Tartufo, palavra até mesmo sonoramente sugestiva de suas qualidades. E Shakespeare foi preciso ao dar o nome de Iago ao canalha intrigante de uma de suas tragédias.

Conforme a mística judaica, Deus tem setenta e dois nomes, tendo iniciado sua criação justamente pronunciando os nomes das coisas. Já na tradição islâmica, Alá tem noventa e nove nomes. E no Mahabharata, Krishna recita uma lista de 1008 nomes de Shiva e de Vishnu, os dois principais deuses da mitologia hindu.


Os 72 nomes de Deus na Árvore da Vida - cabala mística


Um quê de mistério possuem os nomes palindrômicos, aqueles que preservam a mesma forma quando lidos da esquerda para a direita e vice-versa, como Otto ou Ana. Entre os incas tais palavras funcionavam como marca de soberania, pois seus reis eram os únicos cujos nomes eram palíndromos, tais como Capac. E nos Estados Unidos registra-se um casal do meio-oeste do país que batizou os sete filhos com nomes assim: Noel Leon, Lledo Odell, Lura Arul, Loneya Ayenol, Norwood Doowron, Lebanna Annabel e Leah Hael.

Curiosos são os nomes líricos, infantis dos traficantes de drogas brasileiros, que parecem saídos de um poema de Casimiro de Abreu: Escadinha, Fernandinho Beira-Mar, Marcinho VP, Robinho Pinga, Lambari, Sapinho, Claudinho da Mineira, Marcola... Nem parece que fazem o que fazem... Ou talvez esses nomes funcionem como um meio de amenizar o que fazem... Ou de lhes proporcionar personalismo e simpatia no âmbito das comunidades em que atuam.

A vigência dos nomes obedece a modas e tendências no tempo e no espaço. Na época da grande influência francesa no Brasil, eram muito comuns entre os filhos das nossas elites os Pierres, os Jeans, os Victor Hugos, as Emanuelles, as Alines, as Juliettes. Mais tarde, assumindo os Estados Unidos o topo da rapinagem política e cultural no mundo, ocorreu o advento dos Washingtons, Wilsons, Flanklins, Lincolns, Kennedys – sobrenomes de homens importantes na história daquele país – e mais recentemente, com a onipresença da cultura de massas, os Michaels (ou “Maicons”), os Roberts, as Jéssicas, as Sharons, disseminados por todas as classes sociais. Pertencendo a uma língua de fonética tão diferente da brasileira, é claro que tais palavras estão completamente fora do lugar. Essas tendências dariam todo um interessante estudo sociológico de nossa abusiva permeabilidade ao estrangeiro prestigioso.

Quanto às tendências espaciais, verifica-se no Nordeste, por exemplo, a cultura de nomes um tanto esdrúxulos, formados por parte do nome do pai e parte do nome da mãe: Cidimar, Francislu, Adaulino, Josenilda, Paulicleide, Alciwando... Só pode haver simpatia por tamanha criatividade, ousadia, originalidade e coragem!

Lembro um personagem de Machado de Assis chamado Deolindo Venta-Grande, um marinheiro mal-sucedido no amor. Também... com esse nome!

Num país de tão forte tradição católica, nomes de santos ou bíblicos sempre estiveram em evidência, sendo os mais comuns entre nós. Daí a permanência e a difusão de José, João, Francisco, Pedro, Maria, Paula, Teresa...

Óbvio que a formação predominantemente latina também havia de produzir outros de nossos nomes mais comuns, como Antônio, Júlio, Marcelo, Laura, Fabiana, Lúcia.

O nome é uma espécie de farol da pessoa pelas veredas da vida. Sintetiza um ser, contém um destino, abre ou fecha portas. Tanto que aqueles que não gostam de seus nomes de batismo sempre tratam de trocá-los judicialmente ou disseminam um apelido que amenize suas dissonâncias e más evocações semânticas. E tanto mais que a Justiça contemporânea proíbe os pais de batizarem seus filhos com nomes degradantes ou ridículos. Portanto, se por longo tempo muitos esforços resultam infrutíferos, se o fracasso ou a decadência já vão corroendo uma trajetória, talvez seja chegado o momento de se mudar de nome a fim de se forjar outro destino.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Espelho

Ser louco é ser tratado como louco.

Tempo evaporado

Adriano de Paula Rabelo


Em sua obra monumental, o escritor francês Marcel Proust mostra que o tempo, na medida em que avança, é “perdido”, pois o passado jamais poderá ser recuperado na sua completude. Na memória, os acontecimentos e os processos que fazem parte de uma existência individual ou coletiva são revisados sempre à luz das experiências posteriores do indivíduo ou da coletividade. A partir de determinadas referências, fazemos uma releitura que seleciona o que merece ser lembrado e construímos uma explicação que dê sentido ao nosso percurso. Portanto, em vez de proporcionar uma descrição objetiva do passado, a memória o reinventa com grande carga de subjetividade e afetividade. Desse modo, ao relembrar, por mais objetivos que tentemos ser, contamos não exatamente o que se passou, mas fornecemos uma interpretação do que se passou. Isso se dá tanto no âmbito dos relatos da experiência individual quanto coletiva. Por isso, assim como consideramos um fato marcante de nossa biografia de maneira diferente em diferentes momentos de nossa trajetória, a história coletiva será sempre relida pelas novas gerações, a fim de que se possa construir novos sentidos para as novas realidades do tempo presente. Tais são as possibilidades do tempo recuperado ou redescoberto.

Nesta época de esgotamento da moderna ideologia do progresso infinito e da espoliação da natureza – que conheceu seu auge no decurso do século XX –, mais que nunca as últimas gerações têm de se haver com o problema do tempo. Muitas paisagens têm sido substituídas, muitos acontecimentos têm se atropelado em barafunda, muita gente tem passado brevemente por nosso convívio... O corrido estilo de vida atual, em que a velocidade e as estatísticas tornaram-se um valor em si mesmas, faz com que o tempo esteja em constante evaporação. A fugacidade das experiências não permite que muita gente viva de modo mais denso e construa laços e valores duradouros. Com isso, muitos atravessam a vida sem saber bem o que querem, eternos indecisos e insatisfeitos, temerosos de suas escolhas, perdidos num limbo de inúmeras possibilidades.


A Via-Láctea


Que leitura fazer de um passado que se fundamenta no vazio do tempo evaporado? Claro que a brevidade também pode ser significativa. Aliás, os momentos perenes em geral são apenas isto: momentos. Neles, seja pela intensidade, seja pela conjunção de acontecimentos diversos ou a culminação de processos, seja pela repercussão de seus desdobramentos, a eternidade se pronuncia. O que faz do tempo evaporado algo debilitante são o temor da profundidade e do comprometimento, o barateamento e o constante prosaísmo da vida. Atualmente há uma espécie de difuso horror às grandes personalidades, aos projetos de uma vida inteira, às lentas conquistas do conhecimento. Poucas coisas são construídas para permanecer, e tudo vai sendo destruído e refeito de forma um tanto esquizofrênica. Assim, no avançar do tempo, que coisas recuperar, que perenidade redescobrir?

Somos, sim, finitos e de vida curta, mas trazemos na alma, como uma condenação, a ferida crônica e incurável da eternidade. Por isso criamos Deus e o amor, a arte e os mitos, os heróis e os santos, os monumentos e as glórias. Essa existência em dissipação hoje em voga – despida de utopias, avessa à grandeza e encharcada de mediania – é a própria desumanização. Sem densidade de vida não se faz um homem e sim um bicho, uma planta, um fenômeno natural qualquer. O tempo evaporado nada mais é que uma expressão da própria humanidade que se desvanece.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Aliança

O matrimônio se casa ao patrimônio.

Natal venal

Adriano de Paula Rabelo


Aí está mais um Natal, esta epifania dos vendedores. Todo ano é a mesma coisa: tudo se mede pelo metro do aumento de produção, do volume de vendas, do percentual de superação das marcas do ano anterior, das multidões que abarrotam a rua 25 de Março, no centro de São Paulo, em busca de quinquilharias. É tempo de promoções, crédito, descontos, prêmios, uso do décimo terceiro salário, facilidades de pagamento – essas musas do chamado marketing “agressivo”. Os shopping centers, essas catedrais da classe mediana, fervem.

Por todo lado, no verão tropical, a estapafúrdia figura de um velho finlandês em trajes de inverno anacrônicos inclusive em seu próprio país, transportado por trenó e renas, expectorando uma risada bobalhona. E como complemento a decoração de um kitsch miserável, agora toda fabricada por semi-escravos nos cafundós da China: cordas de luzinhas coloridas, imitações de árvores aparentemente originárias da Floresta Negra, dos Alpes ou talvez da Taiga Siberiana onde se penduram bolas coloridas e uma estrela aberrante, guirlandas de galhos ressecados ou flores igualmente fakes pelas portas, sininhos de plástico ou delineados pelas ruas em gás néon. E para arrematar, as musiquinhas irrespiráveis, os cartões horrorosos, as mensagens-clichês.


Uma história distante


Na noite de Natal propriamente, os perus e os leitões assados, a glutonaria e a bebedeira, o amigo oculto simulando harmonia e união entre parentes que se detestam. E as crianças, aprendizes precoces do credo consumista, ávidas por receberem sua presentalhada desvinculada de qualquer atitude criativa, de qualquer valoração afetiva. No fim dessa noite infeliz, quando ela é atravessada sem bate-bocas, choro, ameaças, sentimentalismos constrangedores e outras inconveniências, advém o vazio existencial daquilo que as mercadorias e a pose pseudofeliz jamais poderão preencher: o verdadeiro encontro entre as pessoas, que não tem data marcada no calendário. E no dia seguinte todos retomam seus azedumes e violências, cultivam sua santa reclamação da insegurança e da desagregação social, rugem contra seu trabalho e exalam sua insatisfação com o país, com a vida.

Que relação haverá entre essa baboseira toda e a história de um longínquo menino pobre, filho de pais marginalizados que há vinte séculos fugiram do Egito, a fim de ele não fosse degolado? Um menino que acabou nascendo pelo caminho, num estábulo qualquer, tendo por berço a manjedoura onde comiam vacas e cavalos! Um menino saudado logo depois por três Reis Magos que lhe trouxeram presentes muito especiais, tal como convém a um Deus!

O frenesi consumista, o convencionalismo sazonal, o cenário norte-europeu de mau teatro amador, o esvaziamento da lenda de São Nicolau, a desova da indústria de brinquedos e os transbordamentos de fim de ano em meio à contida segurança pequeno-burguesa reatualizam em tudo, a cada ano, a anti-história do menino-deus. Onde se encontram – nessa agitada pasmaceira, nesse alegre desespero – qualquer esboço de redenção e salvação? Que sentido terá esse recomeço do mesmo?

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Alcatra

Açougue é joalheria de cão.

O malandro ambivalente

Adriano de Paula Rabelo


O malandro é uma personalidade originária da ordem escravista que tem atravessado séculos e demonstrado excepcional capacidade de adaptação aos novos contextos históricos e sociais no Brasil. Sua forma primitiva é a figura do agregado, sujeito livre mas pobre que vivia à sombra dos grandes senhores. Sem exercer uma função econômica na sociedade, já que não possuía propriedade nem trabalhava, pois quase todos os serviços eram executados por escravos, o agregado vivia de favor na casa ou nas terras de um senhor de quem dependia e a quem devia absoluta gratidão. Óbvio que, nessas circunstâncias, o agregado desenvolveu marcantes especificidades no seu modo de ser e de agir. Seu universo era fortemente marcado pelo paternalismo, o apadrinhamento, o personalismo e a informalidade.

No ensaio “Dialética da malandragem”, Antonio Candido interpreta o romance Memórias de um sargento de milícias como uma excelente representação do malandro brasileiro em seu nascedouro. Na obra de Manuel Antônio de Almeida, que o crítico considera o primeiro romance tipicamente nacional, o protagonista Leonardo Pataca transita o tempo todo entre a norma e infração, entre um modelo idealizado de comportamento condizente com os princípios do Estado e da sociedade modernos e os desvios geralmente relacionados às organizações arcaicas.

Já num estudo publicado em 1979, o antropólogo Roberto DaMatta identifica três figuras paradigmáticas na sociedade brasileira, cada uma delas associada a um acontecimento comunitário específico. A primeira delas é o “caxias”, personalidade autoritária que concebe o mundo através da rigidez das hierarquias, das leis e da burocracia. O acontecimento com o qual se identifica em profundidade é o desfile militar. A segunda figura paradigmática é o “renunciador”, aquele que se desapega dos bens materiais e dos prazeres do corpo em nome da fé, seja religiosa, seja política, seja ideológica. Associa-se muito proximamente às procissões. E, por fim, a terceira dessas figuras é o malandro, ser essencialmente marcado pela flexibilização e pela inversão, opondo-se tanto à rigidez das normas e hierarquias como ao ascetismo da fé. Socialmente deslocado, portanto, o malandro não se enquadra na ordem estabelecida, mas também não pretende contestá-la e subvertê-la. Associa-se diretamente ao Carnaval. Para DaMatta, em geral assumimos, em diferentes ocasiões da vida, a persona de uma ou outra dessas figuras.

Nossa formação histórica, com classes sociais radicalmente cindidas não apenas dos pontos de vista econômico e cultural mas também em relação aos direitos e deveres, criou uma distância imensa entre os ricos, que se posicionam acima das leis e possuem a prerrogativa de poder transgredi-las e cometer toda sorte de abusos, e os pobres, que para sobreviverem muitas vezes são obrigados a lançar mão de expedientes para burlar a burocracia e as leis feitas para mantê-los à margem dos princípios democráticos e cidadãos. Daí a controvérsia em torno de certas criações do nosso processo histórico, tais como o “você sabe com quem está falando?” e o chamado jeitinho brasileiro, duas expressões da malandragem que sempre tiveram enorme espaço em nosso jogo social.


Elenco da peça Ópera do malandro, de Chico Buarque, montagem de 2003


O malandro, portanto, é aquele que, posicionado em qualquer lugar na escala social, desvia-se da lei e da regra sem contestar o status quo. Figura ambígua, fruto de uma estrutura formada por privilegiados e desfavorecidos, de um sistema que não conseguiu generalizar o trabalho assalariado e os direitos civis, ele provoca, em geral, um misto de simpatia e revolta. No âmbito popular, o malandro valida seus pequenos golpes como necessários para a sobrevivência ou como uma vingança contra as condições a que está submetido. Se não há emprego nem meios para se ganhar a vida pela via da honestidade, a única alternativa é viver de expedientes, muitas vezes compondo o front dos exércitos montados pelos grandes traficantes, contrabandistas e exploradores da pirataria, do jogo, do latrocínio. Afinal todos estão reduzidos a consumidores, tendo de cavar a qualquer custo o meio para se poder adquirir as mercadorias que uma publicidade avassaladora vive garantindo serem absolutamente necessárias para se alcançar automaticamente a felicidade. Instaurada a filosofia do “salve-se quem puder”, portanto, o capital parece haver conseguido sobrepujar as utopias e as reivindicações coletivistas. Por outro lado, não deixa de provocar uma admiração positiva a astúcia do malandro para sobreviver na adversidade e mesmo para gozar luxos e prazeres à custa de seu necessário complemento, a figura do otário, muitas vezes alguém pertencente à casta privilegiada.

Já no âmbito dos abutres da política e dos grandes negócios, o malandro nem precisa justificar a ilegalidade, cônscio que está de sua invulnerabilidade. Afinal é para o bem de suas mansões, de sua cidadania mundial, de seus carrões importados, de suas lindas amantes e de seus relógios Rolex que continuamos a trabalhar, a pagar impostos e a manter a fé em que “dias melhores virão”. Aqui os otários somos todos os que cumprem honestamente com seus deveres e sustentam um Estado que não oferece retorno de nossas contribuições na forma de boa qualidade de vida. Também esse “malandro federal”, tal como o classifica Chico Buarque numa peça de meados da década de 1970, gera reações ambivalentes. Por um lado é execrado como larápio dos meios para a promoção do bem público; por outro, tendo em vista os padrões hoje consagrados para aferir o êxito pessoal de alguém, são admirados por sua acumulação de capital, por viverem luxuosamente e por sua proeminência nas colunas sociais.

Para nosso bem e nosso mal, esse personagem paradigmático de nossa formação histórico-social há de permanecer ainda por muito tempo, reatualizado todos os dias, em todos os lugares. Somente a construção de um Estado muito mais eficiente que esta farsa que temos, com um mínimo de igualdade de oportunidades para todos - sem nossas disparidades sociais gritantes -, o império das leis, uma educação qualificada e amplamente disseminada, além do espaço para a valorização do mérito individual, o malandro um dia poderá se tornar obsoleto. Mas tudo indica que ele ainda atravessará os próximos séculos, sempre se renovando para se adaptar às novas leis, aos novos costumes, às novas tecnologias.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Extensões

O homem é um produto do meio e dos extremos também.

Arésio, o valente

Adriano de Paula Rabelo


Minha pequena cadela Pituca, um belo pinscher preto, sempre foi bastante dócil e brincalhona em casa, mas freqüentemente deixa as pessoas impressionadas com sua valentia quando sai para as ruas e encontra outros cachorros. Em muitas ocasiões, vi-a partir para cima de cães enormes que, surpreendidos, puseram-se em fuga. Algumas vezes tive de segurá-la para que não avançasse sobre rothweillers, pit bulls, pastores e até são bernardos. Tendo especial antipatia por poodles, quando os vê pelas ruas Pituca, se não for contida em tempo, de imediato lhes oferece como cartão de visitas uma mordida no pescoço. Gatos, então, quando os vê, persegue-os em disparada, caindo estatelada ao tentar subir, tal como os felinos, nos muros e árvores onde eles se refugiam. Não sei de onde vem essa belicosidade pública.

Meu desabusado cachorrinho me faz recordar uma figura impagável que conheci na infância: Arésio. Baixinho e atarracado, de grandes olhos, cabelo desgrenhado e voz rouca, com esse nome raro Arésio era o valente municipal. Ou melhor, o valente de bairro, pois suas estripulias raramente ultrapassavam os limites do nosso canto de subúrbio.

Uma vez, referindo-se a seus arroubos, ouvi-o se autoqualificar como “impulsível”. De fato esse adjetivo lhe caía muito bem, já que ele era um tipo ao mesmo tempo “impulsivo” e “impossível”.

Não sei por que motivo Arésio foi criado apenas pela mãe, uma figura já velhinha e frágil em meus tempos de criança. Em casa e diante da sacrossanta senhora, ele era o mais afável dos cordeiros. Na rua, entretanto, espaço do perigo e da desordem, nosso amigo se transfigurava. Brigador de excepcionais recursos numa época em que ainda eram raríssimas as armas de fogo nas mãos de qualquer um, Arésio humilhava outros valentões – a maioria homens maiores e mais fortes – com sua agilidade e seus golpes. Ainda hoje não faço idéia de como ele arranjava tantos pretextos para se atracar com seus contendores. Em geral isso ocorria a partir de dissensões que iniciadas em bares.

Sempre tive horror às soluções violentas para os conflitos. Poucas vezes na vida, a maioria delas na infância, uma ou outra vez na adolescência, fui às vias de fato com alguém. Quase sempre isso ocorreu por demandas futebolísticas. Hoje mais que nunca, com o Brasil sangrando cotidianamente por causa da violência sem freios, considero desprezíveis e burros os que, diante de qualquer contrariedade, disparam ameaças, palavrões, bofetadas e pontapés, especialmente sobre gente que não conhecem direito.

Mas voltando a nosso personagem, sua valentia provocava nos meninos do bairro um misto de fascínio e repugnância. E nos deixava intrigados a absoluta ascendência da mãe sobre ele. Certa ocasião em que Arésio esmurrava a cara de um certo Baiano, que estava deitado no chão, ela chegou, trôpega, e simplesmente lhe disse: “Arésio, pára com isso e vamo pra casa!” Como um garotinho obediente que a mãe ordena que vá dormir, ele abandonou o oponente, levantou-se, arrumou a roupa e, de maneira patética, tomou o rumo de casa, cabisbaixo. Baiano deu graças a Deus.


Zoinho, menino de rua de dez anos, enfrenta os policiais de São Paulo - foto de Evandro Monteiro


Falei em futebol logo acima. Na única vez em que quebrei algum osso jogando bola, adivinhe quem foi o autor da proeza? Arésio. Eu devia ter uns nove ou dez anos. Não sei por que cargas d’água estava jogando no gol numa pelada com gente grande. A certa altura, Arésio apareceu cara a cara, a pesada bola de couro quicando a dois metros das traves. Ele simplesmente cerrou os dentes e meteu o pé. Arrojado, tentei salvar o gol, jogando os braços e pulando para defender... A bola bateu com toda força no meu punho, e na mesma hora meu braço esquerdo entortou, doendo agudamente e começando a inchar. A cena seguinte foi correr para casa, levar uma tremenda bronca de minha mãe – que, como sempre, imprecava contra o futebol – e ir para o hospital engessar o braço.

Ainda do futebol vem uma das histórias mais fantásticas de Arésio. Num jogo do Campeonato Mineiro, lá por meados dos anos 1970, o Guarani local jogava contra o Cruzeiro de Belo Horizonte. Ainda hoje as torcidas se misturam quando ocorre esse tipo de partida na cidade. Atleticano de quatro costados, Arésio foi assistir ao jogo com uma camisa do Galo, arqui-rival do Cruzeiro, debaixo de uma camisa comum, sentando-se justamente num local cheio de cruzeirenses, a maioria vinda da capital do estado. Lá pelos quinze minutos do primeiro tempo, ele tira a camisa comum e fica com a alvinegra do Atlético entre as azuis do Cruzeiro. Imediatamente a confusão se estabelece. Queriam dar-lhe tapas, surrá-lo, tirar-lhe a camisa, queimá-la. A certa altura, completamente cercado pela pequena multidão azulada, já quase apanhando, Arésio arranca um revólver da cintura e dispara dois tiros para cima. Ato contínuo, houve a mais espetacular debandada de cruzeirenses, que, atropelando-se uns aos outros, evaporaram-se de suas imediações. Os dois policiais que foram ver o que ocorrera – e que conheciam Arésio – deixaram-no em paz ao verificar que a arma era falsa e que os tiros eram de festim. Com isso, o valente atleticano assistiu tranqüilamente ao resto do jogo, sem ninguém sentado num raio de dez metros de onde ele permanecia com a indefectível camisa do seu time do coração.

Arésio tinha bastante familiaridade com animais perigosos ou peçonhentos. Algumas vezes o vi mexendo em colméias de abelhas sem nenhum tipo de proteção. Costumava criar em casa algumas aranhas, serpentes e mesmo um ouriço. Os mais estimados desses bichinhos tinham até nome próprio. Gostava ainda de se exibir na rua com uma enorme caranguejeira que caminhava por seus braços, ombros e cabeça, causando assombro em nós, meninos, e horror em nossas mães. Houve um dia, no entanto, em que – não me lembro onde nem como – eu e outros garotos pegamos um escorpião amarelo, o mais perigoso de todos. Colocado vivo numa caixa de sapatos, o bicho foi levado até Arésio, que estava em pleno bar, escorado no balcão e rodeados por colegas de etilismo. Já um tanto embriagado, ele devia estar num dos seus dies irae, pois simplesmente abriu a caixa, sacou um canivete e cortou pelo meio o rabo do escorpião, onde fica o ferrão. Seguiu-se, então, uma cena inesquecível: Arésio colocou o animal sobre a mesa, deu-lhe uma forte pancada com a mão, levantou-o no ar, já moribundo, e gritou: “É você que fica machucando os meninos por aí, heim?! Heim?!” Por fim, abriu a boca, engoliu o bicho ainda semivivo e emborcou em seguida meio copo de cachaça, para o estarrecimento de toda a assistência.

E por falar em bar, a última história de que me lembro envolvendo o brutal valentão de província se passou num boteco que ficava de frente para uma casa onde minha família morou por alguns anos. Ali Arésio e seus colegas se reuniam diariamente. Numa noite de sábado, já pelo final da minha adolescência, saí por volta das 21h00. Nessa ocasião os bebedores contumazes deram de cantar todo um vasto repertório de sambas-canção e boleros dos anos 1950 em diante. Repassaram de Nelson Gonçalves a Lupicínio Rodrigues, de Orestes Barbosa a Ataulfo Alves, de Vicente Celestino a Antônio Maria. Quando retornei, já passando das duas da manhã, lá estava o coro de sete ou oito vozes, a esta altura já completamente melodramáticas. Quando me deitei, por volta das 2h30, parece que finalmente todo o repertório havia sido repassado. Sem mais disponibilidade de boleros e sambas-canção, os boêmios dispararam a cantar, como despedida, nada menos que o Hino Nacional...

Pelo fim da adolescência, mudei-me de bairro e, alguns anos depois, de cidade. Contaram-me que Arésio também se mudou, após a morte de sua mãe. Nunca mais o vi. Sua brutalidade valentona e teatral, que tanto me impressionou na meninice, foi para mim não um simples sopro mas uma ventania de vida.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Da justiça

Todos os homens são iguais perante a bomba atômica.

O brasileiro torto

Adriano de Paula Rabelo


Durante boa parte do século XIX, ridículas teorias racialistas originárias dos centros do imperialismo europeu e macaqueadas no Brasil por nossa esbranquiçada casta dominante pregaram a inferioridade das raças originadas fora da Europa ocidental, em especial do negro e do amarelo. Pior ainda era considerada a mestiçassem, que, segundo essas teorias construídas sem nenhum aporte científico, degradava os indivíduos, tornando-os instáveis, obtusos e propensos à violência dos instintos sem controle. Em 1888, Nina Rodrigues, por exemplo, intelectual de grande prestígio pertencente à Escola de Medicina da Bahia, lamentava a seguinte “fatalidade” de nossa formação histórica: “Todo brasileiro é mestiço, quando não no sangue, nas idéias.”

Somente nas primeiras décadas do século XX, com os avanços dos estudos sociais, ocorrerá uma reavaliação do papel da mestiçagem na formação do povo, da sociedade e da cultura brasileira. O ápice desse movimento será a publicação de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, em 1933. Nesse clássico da interpretação do Brasil, o sociólogo pernambucano mostra como os portugueses que vieram para o Novo Mundo, mais avançados tecnologicamente, conseguiram submeter o índio e o negro sem deixar de com eles misturar geneticamente desde os primeiros tempos de sua chegada, no século XVI, quando deram início à formação de uma sociedade fortemente marcada pela figura do patriarca. Na seqüência do que comporia uma extensa trilogia, Freyre mostra, em Sobrados e mocambos, a decadência do patriciado rural e o desenvolvimento urbano; e, em Ordem e progresso, a desintegração da sociedade patriarcal e o advento do trabalho livre, o esgotamento do Império e as condições que propiciaram o advento da República. Em grande medida, essa evolução histórica teria se processado, conforme o sociólogo, em virtude da ação do mulato, esse mestiço paradigmático na cultura brasileira, que a partir de então foi revalorizado.

Desde as primeiras manifestações nativistas, nossa especificidade vem se construindo por oposição a uma Europa muitas vezes idealizada em seu racionalismo, classicismo, cosmopolitismo, “pureza” e “superioridade”. Assim nos caracterizaríamos por ser imaginativos, barrocos, antropofágicos, malemolentes, tortos... Talvez esta última qualidade resuma e signifique em profundidade toda uma mitologia com a qual nos identificamos. Muita da nossa mestiçagem de sangue e de idéias, agora reafirmada como positividade, se exprime através de um verdadeiro arquétipo que se construiu em torno do brasileiro torto. Vejamos.

Nosso maior poeta já inicia sua trajetória na literatura com o significativo presságio de um “anjo torto” que, por ocasião de seu nascimento (dele, o poeta), instiga-o para que parta em direção à vida, anunciando que ele será um gauche (esquerdo, desajustado, mal adaptado, desordenado). E assim – como um “gauche no tempo”, na definição de um dos melhores intérpretes de sua obra – Drummond atravessará o século XX construindo uma das expressões fundamentais da cultura brasileira.

Já na era colonial, o brasileiro retorcido se fazia presente. Não por acaso o Barroco proporcionará a primeira manifestação original da arte brasileira. E, na arte barroca, a figura que encarna o gênio nacional por excelência durante os tempos da Colônia é a do mulato Antônio Francisco Lisboa, filho de mãe negra escrava com um arquiteto português, formado como síntese preciosa de culturas diversas. Na idade madura, o surgimento de uma lepra, que lhe corroeu os dedos e as mãos, fez com que o agora chamado Aleijadinho se dedicasse com toda a sua potencialidade humana a sua atividade como escultor, produzindo obras-primas com ferramentas amarradas a seu corpo mutilado.

Outra figura que pode ser vista como gênio torto é o nosso maior escritor, Machado de Assis, filho de pai negro e mãe branca de origem portuguesa; ele pintor de paredes, ela costureira. Pobre, epilético e mulato numa sociedade senhorial e escravista, reunindo várias características de alguém que só poderia se realizar como um pária no Brasil do século XIX, Machado se transformou na expressão mais universal da literatura brasileira, criticando a sociedade de seu tempo com fina e superior ironia, expondo a conduta artificial, insensível e egoísta de nossa casta dominante.

Em Sobrados e mocambos, Gilberto Freyre, ao tratar da ascensão do bacharel e do mulato na sociedade brasileira, registra como o aumento da civilização veio acompanhado por uma onda de sifilização. Assim, nas últimas décadas do século XIX e primeiras do XX, para o sociólogo, foi se urdindo o mito do “amarelinho”, segundo o qual o protótipo do herói brasileiro seria o tipo pequenino, magro, feio, disgênico, “quase um menino, vestido de homem”. Nessa categoria se ajustam perfeitamente três das maiores glórias nacionais: Santos Dumont, Rui Barbosa e Euclides da Cunha, ícones de nossa quintessência impura. Curioso como esse mito do amarelinho se faz presente também no imaginário popular, através de personagens depauperados mas de uma astúcia genial como João Grilo, Pedro Malasartes e Manoel Riachão, ou mesmo na mitificação em torno de figuras históricas como Lampião e o padre Cícero. Por contraste, cultivamos certa aversão pelo herói bonitão, encorpado e eugênico, que praticamente não tem vez em nosso panteão.

Ainda no âmbito do imaginário popular, figuras lendárias como o Saci-Pererê, negrinho mutilado de uma perna; o Curupira, anão de traços indígenas e pés virados para trás; e Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter”, são vigorosas figurações de uma psicologia coletiva que extrapola longamente os racionalismos estreitos.

Mas é talvez do futebol que nos vem a confirmação de que o brasileiro anda direito pelos caminhos mais tortos. Para ficar em apenas uns poucos exemplos – um de cada grande etapa da história do esporte no Brasil –, restrinjamo-nos a três personagens extraordinários.


Pernas de Garrincha, foto tirada em 1964


O primeiro é Arthur Friedenreich, o primeiro craque excepcional surgido nos gramados do país. Filho de pai alemão e mãe negra brasileira, esse mulato sui generis, maior goleador da história do futebol, fez com que, nos anos 1910, época em que o esporte era apanágio de uma elite branca e racista, o país se olhasse e se reconhecesse no espelho. Sobre ele, diz Mário Filho: “A popularidade de Friedenreich se devia, talvez, mais ao fato de ele ser mulato, embora não quisesse ser mulato, do que de ele ter marcado o gol da vitória dos brasileiros [na final do Campeonato Sul-Americano de 1919, primeira grande conquista da Seleção Brasileira]. O povo descobrindo, de repente, que o futebol devia ser de todas as cores, futebol sem classes, tudo misturado, bem brasileiro.”

Se Pelé foi o maior futebolista de todos os tempos, Garrincha foi seguramente o maior fenômeno da história do esporte. Se o sublime crioulo era perfeitamente talhado para se tornar o “atleta do século”, o inexplicável mestiço de índio, negro e branco reunia deficiências que não o qualificavam sequer como peladeiro de rua: pernas tortas, uma bem mais curta que outra, bacia deslocada, baixinho e tendente a gordinho. No entanto, com seu único drible para a direita arrasou defesas compostas pelos mais eugênicos latagões. Freqüentemente deixava estatelados cinco ou seis apolos que tentavam tirar-lhe a bola. Sobre ele e sobre nós, dizia Nelson Rodrigues: “Feliz do povo que pode esfregar um Garrincha na cara do mundo!”

Por fim, Romário, flor da periferia carioca. Baixinho, irresponsável, desbocado, rebelde, indisciplinado, campeão da solércia e da provocação, dentro de campo foi um mago da pequena área, com seus gols de biquinhos e toques sutis em espaços ínfimos de campo preenchidos por zagueiros gigantescos. Praticamente sozinho ganhou a Copa do Mundo de 1994, rodeado por uma das mais sofríveis Seleções Brasileiras do século XX. Fora de campo, nunca se deixou engambelar pela cartolagem mafiosa nem pela imprensa corrupta que são parte do lado podre do futebol. Ao contrário, colocou-os no bolso, fazendo sempre o que desejava e, principalmente, passando-lhes o conto-do-vigário dos mil gols, em que até os tentos assinalados em peladas na praia entraram em suas contas…

Esse mostruário de heróis nacionais parece exprimir em boa medida nossa identidade e nossa psicologia. Os brasileiros sem dúvida preferem a astúcia à força bruta como instrumento de ação política e social. As figuras mais admiradas do nosso panteão são aquelas que transformam seus defeitos ou supostas desvantagens em qualidades especiais, que utilizam muito mais a malícia, a habilidade e a sagacidade do que a arrogância, os punhos e a violência. Quando deixarmos de imitar os centros do ultra-racionalismo e da rapinagem, assumindo nossa sinuosidade essencial, avançaremos como Aleijadinho sobre a pedra, como Garrincha sobre joões: – e enfim nos tornaremos o que somos.